30 de nov. de 2010

As filas

"Não suportava ajuntamentos perto de mim, e, acima de tudo, não tolerava entrar em fila comprida para esperar seja lá o que fosse. E é nisto que toda a sociedade está se transformando: em longas filas à espera de alguma coisa.
Tentei me matar com gás e não consegui. Mas tinha outro problema. Levantar da cama. Sempre tive ódio disso. Vivia afirmando: “as duas maiores invenções da humanidade foram a cama e a bomba atômica". Não saindo da primeira, a gente se salva, e, soltando a segunda, se acaba com tudo. Acharam que estava louco. Brincadeira de criança, é só disso que essa gente entende: brincadeira de criança – passam da placenta pro túmulo sem nem se abalar com esse horror que é a vida.”

Buk - Fabulário Geral do Delírio Cotidiano

29 de nov. de 2010

2 amigos


Não tenho certeza da idade exata em que nos conhecemos (talvez 9 ou 10) mas Moises era um dos meus primeiros amigos de verdade: judeu e muito quieto e meu segundo amigo de verdade era o Ruivo - ele tinha um braço bom e parte do outro: a parte inferior de seu braço direito era puro esmalte branco com uma luva de couro marrom sobre os dedos artificiais.
Moises sumiu primeiro. Meu pai me informou sobre ele: apontou para uma garagem rua abaixo uma grande estrutura amarela e branca com portas metálicas: "teu amigo Moises foi flagrado lá dentro fazendo algo numa menina de 5 anos. pegaram ele"

A amizade com o Ruivo durou mais. durante todo o verão nadávamos juntos na piscina publica. ele tinha que remover o braço artificial quando saia mergulando com seu um-braço-e-meio, o braço curto terminando logo abaixo do cotovelo. parecia como se tivesse minúsculos mamilos na extremidade ou talvez parecessem minúsculos dedos.

Os outros garotos o provocavam por causa do meio-braço e seus minúsculos dedos mas eu era um mau elemento e disse a eles nos termos mais precisos que a piscina pertencia a todos e que deixassem ele nadar, merda, senão...

isso às vezes nos trouxe problemas depois: uma turma nos seguiria até em casa
a casa dele ou a minha e mais de uma vez ficariam lá fora gritariam para nós
até que saíssemos e os encontrássemos no gramado da frente. eu não era tão bom quanto o Ruivo. ele era muito bom com seu braço branco puro de luva marrom, eram geralmente 4 ou 5 contra 2 mas o Ruivo simplesmente derrubava um após o outro
balançando aquele braço duro como um porrete eu ouvia o som dele contra os crânios
e então haveria garotos caídos no gramado com as mãos nas cabeças e isso só me faria mais maldoso e eu pegaria um ou dois por mim mesmo e logo todos menos o Ruivo e eu teriam sumido da rua. íamos nadar na piscina pública juntos com mais e mais freqüência. parecia sempre haver novos garotos sempre mais novos garotos que não conseguiam se tocar como a coisa funcionava. eles apenas não entendiam que nós só queríamos nadar e ser deixados em paz. voltando ao Moisés eu não tenho certeza mas, infelizmente, de certo modo ele deve ter tido algumas partes amputadas também. nunca o vimos de novo mas sua mãe com certeza sabia como cozinhar eu me lembro de todos aqueles aromas deliciosos de comida pela casa. eu nunca vi a mãe do Ruivo cozinhar nada.

BUK - Livro : o hino da tormenta

Contribuição mais do que querida da amiga MEL MENDES - http://melmendesprofile.blogspot.com/

28 de nov. de 2010

Bebedos


Os bêbedos das três horas da manhã, em todos os Estados Unidos, fitavam as paredes, depois de terem finalmente desistido. Não era preciso ser bêbedo para se machucar, para cair sob a mira de uma mulher; mas a gente podia se machucar e se tornar um bêbedo. Você podia pensar por algum tempo, sobretudo quando era jovem, que estava com sorte, e às vezes estava mesmo. Mas havia todo tipo de médias e leis em ação das quais você nada sabia, mesmo quando imaginava que tudo ia indo bem. Uma noite, uma quente noite veranil de quinta-feira, você se tornava o bêbedo, você estava lá fora, sozinho num quarto de aluguel barato, e por mais que tivesse visto isso antes, não diantava, era até pior, porque você tinha pensando que não teria de enfrentar aquilo de novo. A única coisa que podia fazer era acender mais um cigarro, servir outra bebida, examinar as paredes descascadas em busca de olhos e lábios. O que homens e mulheres se faziam uns aos outros estava além da compreensão.
Buk - numa fria

26 de nov. de 2010

SEM CHANCE DE AJUDA


há um lugar no coração que nunca será preenchido
um espaço e mesmo nos melhores momentos
e nos melhores tempos
nós saberemos
nós saberemos mais que nunca
há um lugar no coração que nunca será preenchido
e nós iremos esperar e esperar
nesse lugar.

Buk - Essa loucura roubada que não desejo a ninguem a não ser a mim mesmo amém

25 de nov. de 2010

CORCUNDA

eu fui amado por muitas mulheres e, para uma vida corcunda
isso é uma sorte
tantos dedos adentrando meus cabelos
tantos abraços apertados
tantos sapatos atirados sem cuidado no tapete do meu
quarto.
tantos corações em busca
agora tão nítidos em minha memória que caminharei para a morte, lembrando
tenho sido tratado melhor do que deveria ser - não pela vida em geral
nem pelo mecanismo das coisas
mas pelas mulheres
mas houveram mulheres que me deixaram plantado no quarto sozinho
encurvado
com as mãos no saco pensando
por quê por quê por quê por quê?
mulheres vão para homens que são porcos
mulheres vão para homens com almas mortas
mulheres vão para homens que trepam pessimamente
mulheres vão para sombras de homens
mulheres vão
vão porque precisam ir
pela ordem das coisas.
as mulheres sabem mais
mas muitas vezes escolhem na confusão e desordem
elas podem curar com seu toque
elas podem matar o que tocam e eu estou morrendo
mas não estou morto ainda.

BUK - ESSA LOUCURA ROUBADA QUE NÃO DESEJO A NINGUÉM A NÃO SER A MIM MESMO AMÉM

22 de nov. de 2010

Seja bondoso

sempre nos pedem para compreender o ponto de vista
do próximo não importa quão antiquado tolo ou obnóxio.
pedem para enxergar com bondade
todos os seus erros suas vidas desperdiçadas,
principalmente se eles são velhos.
mas envelhecer é tudo que nós fazemos.
eles envelheceram mal porque
viveram fora de foco, eles se recusaram a entender.
não é culpa deles? é culpa de quem? minha?
me pedem para esconder deles meu ponto de vista
por medo de seus medos.
envelhecer não é crime
mas a vergonha de uma vida deliberadamente desperdiçada entre tantas
vidas deliberadamente desperdiçadas
é.

[extraído do livro The Last Night of the Earth Poems (1992), Black Sparrow Press]
Origem da Tradução: http://www.traducoesdeumvelhosafado.blogspot.com/

16 de nov. de 2010

Foi isso que matou Dylan Thomas

... Mas não consigo deixar de pensar nos anos em quartos solitários, quando as únicas pessoas que batiam à minha porta eram as senhorias cobrando o aluguel atrasado ou o FBI. Vivia com ratos e camundongos e vinho, meu sangue escorria pelas paredes em um mundo que não conseguia compreender e ainda não compreendo. Em vez de levar a vida que eles levaram, eu passava fome. Fugia para dentro de minha própria mente e me escondia. Fechava todas as cortinas e ficava olhando para o teto. Quando saía, era para ir a um bar onde eu mendigava por bebida, andava a esmo, apanhava nos becos de homens bem-alimentados e confiantes, de homens idiotas e com vida confortáveis. Bem, ganhei algumas lutas, mas so porque era louco. Fiquei anos sem mulher, vivia de manteiga de amendoim e pão amanhecido e batatas cozidas. Eu era o idiota, o estúpido, o louco. Queria escrever, mas a máquina de escrever estava sempre penhorada. Então eu desistia e bebia.

Buk - Ao sul de lugar nenhum.

15 de nov. de 2010

Aprisionado

No inverno caminhando em meu teto, meus olhos do tamanho de luzes de poste. Tenho quatro patas como um rato mas lavo minhas roupas íntimas - barbeado e de ressaca e de pau duro e sem advogado.
Tenho cara de esfregão, canto canções de amor e carrego aço.
Preferiria morrer a chorar. Não suporto a matilha, não posso viver sem ela.
Inclino minha cabeça contra o refrigerador branco e quero gritar como o último lamento de vida para todos sempre mas sou maior do que as montanhas.

Buk - O amor é um cão dos diabos.