1 de dez. de 2009

Deixe isso te envolver

Deixe isso te envolver, paz ou felicidade
Deixe isso te envolver...
Quando era jovem achava que essas coisas eram bobas, naturais. Era sangue ruim, mente torta, mal-educado. Era duro como granito, olhava de esguelha de dia. Não acreditava em nenhum homem e especialmente em nenhuma mulher.Ia vivendo o inferno em quartinhos, quebrei coisas, joguei coisas, andei através do vidro, maldito. Desafiei tudo, fui continuamente expulso, preso, dentro e fora de briga, dentro e fora da razão. Mulher era coisa só pra sacanear e insultar, não tinha amigos. Mudei de emprego e de cidade, detestava feriados, crianças, história, jornais, museus, avós, casamento, cinema, aranhas, lixeiros, sotaque inglês, espanha, frança, itália, nogueira e cor de laranja, álgebra me irava, ópera me punha doente, charles chaplim era falso e flores eram pra frescos. Paz e felicidade pra mim eram símbolos de inferioridade, inquilinas da fraqueza e de publicitários. Mas como eu segui com isso, minhas brigas nos becos, meus anos suicidas, meu trânsito por inúmeras mulheres - gradualmente começou a me ocorrer que eu não era diferente de ninguém, era igual, eles eram todos cheios de ódio, envernizado com banais ressentimentos, os homens com quem briguei nos becos tinham coração de pedra todos acotovelavam-se, avançando, logrando por ninharias, a mentira era arma e o enredo estava pronto, a escuridão era a ditadora. Prudentemente, permiti a mim mesmo me sentir bem por uns tempos. Tive momentos de paz em quartos baratos apenas fixando os olhos nos botões de alguma roupa, ou escutando a chuva no escuro, menos precisava melhor me sentia. Talvez outra vida tivesse me esgotado. Poucas vezes achava graça levando alguém no papo, ou trepando no corpo de alguma pobre bêbada que passou a vida mergulhada em mágoas. Nunca pude aceitar vida como aquela, nunca pude engolir todos aqueles venenos, mas houve partes tênues, mágicas partes, abertas, pra resposta. Me emendei não sei quando, data, hora, tudo isso mas a mudança ocorreu. Alguma coisa em mim relaxou, acalmou. não mais tive que provar que eu era homem, não precisei provar nada, comecei a ver as coisas: xícaras de café alinhadas atrás do balcão do café, ou um cachorro caminhando ao longo da calçada, ou o modo como o camundongo parou em cima da cômoda com seu corpo, suas orelhas, seu nariz, parado, pedaço de vida agarrada nela mesma e seus olhos me fitando e eles eram belos. assim – aquilo se foi. Comecei a me sentir bem, comecei a me sentir bem nas piores situações e havia muitas delas. Como disse o chefe atrás da mesa, ele estava pra me despedir, eu havia faltado por muitos dias. Ele estava vestido de terno, gravata, óculos, ele disse: “tenho que te mandar embora”. tá certo, eu disse. ele fez o que devia fazer, ele tem mulher, casa, filhos, despesas, muito provavelmente uma amante. Eu o desculpo ele estava surpreso saí pelo inflamado pôr-do-sol. O dia inteiro era meu temporariamente em todo caso. Todo mundo está engasgado com todo mundo, todos se sentem irados, ludibriados no troco, logrados, todos desanimados, desiludidos. dei boas-vindas a tentativas de paz, farrapos de felicidade. abracei aquela coisa, como números quentes, saltos altos, seios, cantoria, as obras. (não me entenda mal, é alguma coisa com otimismo estrábico que sobreolha todos os problemas básicos só por amor a si mesmo - isso é a cura e a doença) a faca tocou minha garganta de novo, quase voltei pro papo furado mas quando os bons momentos voltaram eu não lutei contra como se fosse adversário do beco. Me deixei levar, me deleitei neles, saudei boas-vindas ao lar. uma vez até olhando no espelho me achando feio, agora gostei do que vejo, quase bonito, sim, um pouco destruído e raivoso, com cicatrizes, inchado, expressão bizarra, mas no geral, não muito mal, quase bonito, pelo menos melhor do que aquelas de estrelas de cinema com caras de bumbum de bebê, e afinal descobri o real sentimento dos outros, não anunciados, como recentemente, como esta manhã, quando ia partir, na seqüência, vi minha mulher na cama, apenas a forma de sua cabeça lá (não esquecendo séculos de vivos e de mortos e de moribundos, as pirâmides, Mozart morreu mas sua música ainda está lá no quarto, ervas crescendo, terra girando, ”toteboard” esperando por mim) vi a forma da cabeça da minha mulher, ela tão calma, me doía por sua vida, apenas existindo ali debaixo das cobertas. beijei-a na testa, fui pra escada, fui pra fora, fui pro meu maravilhoso carro, coloquei o cinto de segurança, acionei a marcha, senti calor na ponta dos dedos, pus o pé no acelerador, e fui pro mundo mais uma vez, dirigi colina abaixo, além das casas cheias e vazias de gente, vi o carteiro, buzinei, ele acenou pra mim.

Charles Bukowski

4 comentários:

Wendy Loyola Fernandes disse...

maravilhoso buk.

JB. disse...

Verdade... No satisfaction!

Guilherme disse...

Prezado, saberia informar em qual livro está este texto? Obrigado!

Anônimo disse...

alguém sabe de qual livro é?